AGANTRO
Por uma antropologia do conhecimento dos camponeses: afeto, atenção e territorialidade.

Desenvolvo desde a década de 2010 pesquisas que têm a zona rural fronteiriça do Barroso como loco principal de observação, estudo e vivência. E tendo os camponeses, que lá moram o ano todo criando as suas vacas e cabras, como meus amigos e principais interlocutores.

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A aldea de Pitões na fronteira. Elena Martín

Agantro (Asociación Galega de Antropoloxía Social e Cultural)

28 dic 2020 11:40

O conhecimento é uma chave analítica amplamente explorada em nossas análises antropológicas. Através da etnografia, nossa principal marca e ferramenta, nos envolvemos com os nossos interlocutores em conversas que raramente tratam de forma exclusiva daquilo que poderíamos chamar de nosso objeto de pesquisa. E falo de “objeto” sem nenhuma convicção acerca da necessidade de objetificação para pensar a pesquisa antropológica..

Como disse o célebre antropólogo Edmund Leach, a antropologia é uma ciência viva porque está sempre se repensando. Nossas análises nada mais são, do que voltas e reviravoltas, com diferentes nomes, técnicas, focos e abordagens. O funcionalismo, estruturalismo, pós-modernismo e o animismo são algumas das formas de nos enclausurar dentro do campo disciplinar, como bem definiu Bourdieu.

Escolas e tradições se formam e fundem no que pode ser chamado de história da disciplina e, dessa forma, pontos de vista, interesses, perspectivas, escalas, ambientes geográficos e nomenclaturas vão e vêm. É claro que os condicionantes da vida, as configurações sociais, políticas e econômicas mais macro são de fato marcas cruciais para essas novas leituras.

Desenvolvo desde a década de 2010 pesquisas que têm a zona rural fronteiriça do Barroso como loco principal de observação, estudo e vivência. E tendo os camponeses, que lá moram o ano todo criando as suas vacas e cabras, como meus amigos e principais interlocutores. Essas pessoas - homens, mulheres e crianças - são de diferentes gerações e de diferentes faixas etárias. Com elas, compartilhei muitas horas de conversa acerca da vida, mas também das terras, das vacas, das plantas e das casas. Destacaria aqui as leituras processualistas e relacionais que elas fazem de suas vidas e de sua atividade principal. Meu objetivo para com este manifesto é em prol de uma antropologia do conhecimento dos camponeses, onde trago alguns breves relatos de campo que mobilizam as leituras que eles têm de suas atividades e que definem territorialidade.

Meu objetivo para com este manifesto é em prol de uma antropologia do conhecimento dos camponeses, onde trago alguns breves relatos de campo que mobilizam as leituras que eles têm de suas atividades e que definem territorialidade

Venâncio, morador da aldeia de Tourém, de quase oitenta anos, me contava as estratégias usadas para compor o que hoje é uma terra só. Ele e sua família se mudaram pra Tourém na década de 1960. Com o passo do tempo, foram comprando várias territas, uma do lado da outra, com a ideia de fazer uma parcela maior. Na atualidade detêm um dos maiores lameiros da aldeia de Tourém chamado Cima de Vila, pois dizem que nas proximidades se esconde um castro. Para Venâncio, aquela terra em particular é o colmem da obra de sua vida. Ele a visita diariamente como se tivesse feito uma promessa, como ele mesmo me disse.

A pergunta que me fiz a partir das falas dele foram: mas lameiro quando? Como? Cima de Vila não foi sempre lameiro, antes foi terra ou nabal. Já cultivou batatas no tempo em que havia a cooperativa da batata de semente, já teve horta, e também, milho e centeio. O uso atual da terra precisa ser entendida de forma contextual, pois a qualquer momento pode mudar a destinação, e com ela a forma de se nomear.

Lameiros são pastagens semi-naturais de montanha que definem e marcam o sistema agrícola tradicional daquelas terras, que foi reconhecido pela FAO em 2018 como patrimônio agrícola mundial. Esse reconhecimento não se deu pelas políticas públicas que favorecem os impérios alimentares, nem pela concentração fundiária e a monocultura. A relação, e a sequência de gerações e gerações de camponeses trabalhando aquela paisagem e moldando-a em função de diferentes condicionantes foi decisiva pra essa catalogação. 

Além das terras, os tempos também estão marcados. Antes do mês de julho, acontecem as festividades do são João em Pitões e São Pedro em Tourém. Após essas comemorações começa o tempo do feno, marcado pelo ritmo frenético dos agricultores. Os filhos dos agricultores que estudam na universidade ou que trabalham nas cidades, e, até irmãos que residem fora de Portugal são convocados pela casa para ajudar. A aldeia se converte num corredor de tratores e num desfile das múltiplas alfaias de cada unidade produtiva familiar: pentes de cortar feno, as mais recentes rotativas, enfardadeiras de fardos e de rolos, viradores e reboques carregados de feno, transitam o dia todo pelas ruas das aldeias. Os agricultores carregam os fardos ou rolos de feno para estocar nos edifícios agropecuários que se situam na periferia do núcleo habitacional. Uma vez processados os fardos ou os rolos na terra, se pegarem chuva, a erva fica escura e isso implica na perda de nutrientes e, também, não diz muito bem do agricultor.

Antes do mês de julho, acontecem as festividades do são João em Pitões e São Pedro em Tourém [...] Os filhos dos agricultores que estudam na universidade ou que trabalham nas cidades, e, até irmãos que residem fora de Portugal são convocados pela casa para ajudar.

A limpeza e excelência do trabalho nos lameiros é, apesar do frenesi, uma questão relevante. A precisão também é crucial. É importante que não fique uma erva em pé no lameiro depois de ceifado, pois ela se assemelha a uma bandeira, explica Venâncio. As bordas também têm que estar perfeitamente ceifadas. Todos os agricultores observam detalhadamente os lameiros ceifados e qualquer defeito será alvo de mexerico. As carreiras de feno feitas com ajuda do virador têm que estar alinhadas, de forma que o trator com a enfardadeira circule entre elas sem passar por cima do feno. É importante a quantidade de feno por carreira, pois se preza que a enfardadeira ande ligeira e sem parar. É crucial o conhecimento das terras, das plantas, dos processos produtivos e das máquinas.

Para fazer as fileiras de feno precisa estar seco, mas não queimado pelo sol. Se uma parte do feno estiver úmido ou verde a erva fermentará dentro do fardo e apodrecerá. Todas essas variáveis devem ser equacionadas pelos agricultores, incluindo as que não têm controle como as condições climáticas. O histórico de cada terra também é relevante, e assim o ratifica Cascais, agricultor de Pitões, quando afirma que mantém a mesma sequência na ordem de ceifa dos lameiros que seu pai.

Para o centeio, a atenção e precisão também estão presentes. O centeio é o cultivo mais importante daquela terra, há centenas de anos que está sendo cultivado e aprimorado. Como me disse o Patorro de Pitões, aqui é terra de centeio.

O centeio também é chamado de messe, que etimologicamente significa o que está maduro. Na atualidade, o centeio é malhado na própria terra por malhadeiras que não são dos agricultores, o que os deixa mais vulneráveis, pois, se não vier a máquina no tempo certo, podem perder a terra de pão, outro nome local do cultivo.

Após processada a messe, os agricultores ressemeiam as terras novamente com centeio para obter a ferranha no outono, após as primeiras chuvas. Quais terras e quantas serão semeadas com ferranha não é uma escolha aleatória nem fixa, depende da quantidade de centeio e se a colheita foi boa. A estratégia da casa está sempre sendo repensada.

A limpeza e excelência do trabalho nos lameiros é, apesar do frenesi, uma questão relevante. A precisão também é crucial. É importante que não fique uma erva em pé no lameiro depois de ceifado, pois ela se assemelha a uma bandeira, explica Venâncio

O outono também é o rebento novo do mosaico de plantas (gramíneas e leguminosas) que compõem o feno. Nos lameiros, após ceifarem o feno, os agricultores aguardam as águas da chuva caso a propriedade seja de sequeiro, isto é, sem irrigação, para que as plantas retomem seu ciclo vegetativo. As ferranhas e o outono são os últimos alimentos verdes que as vacas comerão, quando descerem da serra após passar o verão pastando livremente, prévio ao seu período de confinamento do inverno. Antes de serem estabuladas devido aos duros meses de inverno que há naquelas terras, os agricultores gostam de oferecer para suas vacas uma dieta mais rica, e aí entram os brotos de feno verde, e mais a ferranha.

As vacas são deitadas à serra antes de começar o verão, e os agricultores trabalham arduamente nesse período para garantir e estocar o alimento que lhes darão ao longo do inverno. O feno, o centeio, as batatas e o milho são as principais culturas daquelas terras. Nesse tempo em que as vacas estão nos baldios ou terras de uso comum, se alimentam do que a serra lhes dá, me explicou Zé do Raposo. Nos planaltos, nos fundos dos vales de montanha e nos portos, as vacas circulam em manadas e, o conhecimento que detém cada agricultor de suas vacas é crucial nesse tempo em que a maior atenção recai na lavoura. Devem saber onde estão as suas vacas, e cotidianamente se deslocam até a serra para observá-las. A serra está cheia de perigos também, as vacas lutam entre elas, podem quebrar uma pata ao pular as pedras, ou algumas, inclusive, parir. Os agricultores têm a capacidade de projetar possíveis roteiros de suas vacas mentalmente. Dia a dia, imaginam o rumo que tomaram e esse mapa mental é atualizado com a visita in loco, para assim poderem desenhar as seguintes projeções.

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Plantación en Pitões Elena Martín

Há dias que encontram as vacas mais rápido e há dias que demoram mais tempo. A hora do dia, as condições climáticas e o tipo de terreno em que estão, influenciam no comportamento. O território também é conhecido e determinante. Cada agricultor tem costume de levar as suas vacas para um determinado local. Dessa forma, as vacas do Patorro preferem ir em direção a Salgueiro e as, de Tono do Artur gostam mais da fronteira. No entanto, a zona destes dois agricultores é a mesma, pois há os, que levam as vacas para a Mourela, que é muito distante, me explicou Zé da Carreira. Entre os agricultores mais próximos, a cooperação é uma prática comum: se um dia Tono vê as vacas do Patorro, ao voltar à aldeia irá na casa deles, ou acionará a rede de pessoas que façam chegar a mensagem, caso não se encontrem no café. Há uma rede social dos agricultores que se projeta pela serra e pela qual circulam informações importantes para eles. Quando um agricultor vai ver as vacas não analisa somente as dele, observa atentamente e estuda indicadores de mudanças e possíveis transtornos das outras manadas, uma vaca deitada vários dias, ou uma dispersão estranha são indicadores de perturbações. Os rebanhos são conhecidos, grosso modo, por todos os agricultores. Sabem, por exemplo, que o Patorro tem duas vacas pretas, que as do Tono são todas limousin, ou que o Antônio tem duas cachenas. Dessa forma as manadas são claramente identificáveis na serra pra eles.

Há, portanto, o entendimento entre os agricultores de uma relação sinérgica, colaborativa e de co-produção entre os humanos e não humanos. E agrego, que configuram as múltiplas formas de habitabilidade daquela terra comum

Não podemos entender essa relação entre o binômio vaca-agricultor e serra como unilateral, pois, não somente as vacas e os humanos retiram materiais importantes para si da serra. As vacas também são necessárias para a serra, como disse meu amigo Zé do Raposo: as vacas fazem bem à serra e a serra faz bem as vacas. Há, portanto, o entendimento entre os agricultores de uma relação sinérgica, colaborativa e de co-produção entre os humanos e não humanos. E agrego, que configuram as múltiplas formas de habitabilidade daquela terra comum.

Ao longo de sua vida, Venâncio já viu e fez muitos arranjos no seu sistema produtivo familiar. Enfardadeiras, máquinas de cortar feno, malhadeiras estacionárias de centeio ou as mais modernas já passaram por sua exploração, no entanto, as terras e eles continuam na aldeia, e as vacas também, me pontuou. Ainda que não sejam as mesmas vacas, os mesmos cultivos, nem as mesmas terras, a permanência e transcendência de todos os elementos do sistema é que fazem com que este esteja ainda vivo e pulsante. Sem o conhecimento mobilizado por parte dos agricultores, poderia pensar nos meus amigos como meros executores de uma atividade produtiva dirigida, herdada ou cíclica. No entanto, o que percebo é uma prática dinâmica, mais próxima da arte, como bem definiu Chayanov, em que as variáveis são colocadas, testadas, estudadas, moldadas e executadas nessa sinfonia maravilhosa que são essas aldeias, seus ritmos e sua vida agrícola atual.

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