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AGANTRO
Necropolítica em três atos
Como podemos entender as formas de continuidade que persistiram da ditadura para a dita democracia e se veem exacerbadas nas políticas da morte na pandemia?
Sob o título “Brasil: Quão caótico é este governo?” o programa alemão “Conflict Zone”, entrevistou o vice-presidente do Brasil (um general do exército) Mourão que classificou um dos mais notórios torturadores do regime, Carlos Brilhante Ustra, como um "homem de honra e que respeitava os direitos humanos de seus subordinados”. O agente ao que faz referência era peça chave da engrenagem repressiva, comandou um centro clandestino de detenção em São Paulo e foi também homenageado inúmeras vezes pelo atual presidente da república.
Essa é mais uma das inúmeras notícias que nos escandaliza sobre o Brasil. Mais de 150.000 mortos pela pandemia da COVID-19. Perda de quase 22% do Pantanal, um dos ecossistemas mais ricos do mundo em biodiversidade de flora e fauna. Incêndios criminosos na Amazônia. Reforma administrativa que afetará principalmente funcionários de base como professoras, enfermeiras, assistentes sociais. Privatizações e aumento de mais de 20% na violência policial durante a pandemia em comparação ao ano de 2019, que já vinha com números alarmantes. São cenas de uma mesma tragédia orquestrada pelo governo de Jair Bolsonaro e seus apoiadores que dificulta a imaginação de outros futuros possíveis a qualquer pessoa com mínimo de humanidade.
Nos cemitérios da cidade de São Paulo tem se denunciado a sobrecarga e a falta de equipamentos de proteção para os funcionários. No mês de julho, quatro sepultadores já haviam falecido por COVID-19. No mesmo mês, o atual prefeito que concorre este ano para eleições municipais, numa política neoliberal de privatização dos serviços e instituições da cidade, realiza a concessão dos 22 cemitérios públicos para empresas privadas. Movimentos sociais e pesquisadores denunciam que estamos ante a uma política onde negacionismo e omissão se tornam políticas do governo. Em outras palavras, a não-ação é uma decisão – fazer ou deixar morrer como expressão última da soberania.
Como podemos entender as formas de continuidade que persistiram da ditadura para a dita democracia e se veem exacerbadas nas políticas da morte na pandemia? Dialogando com as análises propostas pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, a necropolítica, enquanto política do deixar morrer, se vê impressa nas lógicas de omissão estatal, refletindo-se no tratamento dos corpos e nas formas de desaparecer contemporâneas. A gestão burocrática da morte dada pelas instituições responsáveis por identificar e controlar esses corpos e seus destinos é deliberadamente negligente. Nessa distribuição desigual de direitos em vida e em morte é onde o desaparecimento por omissão tem ocorrido e dificultado qualquer possibilidade de restituição às famílias.
Movimentos sociais e pesquisadores denunciam que estamos ante a uma política onde negacionismo e omissão se tornam políticas do governo. Em outras palavras, a não-ação é uma decisão – fazer ou deixar morrer como expressão última da soberania.
No contexto da pandemia, como buscar a uma pessoa desaparecida nessas grandes cidades? Como seguir o caminho da morte, quando os acessos às instituições públicas se veem restringidos e muitas delas colapsadas pela alta demanda?
No Brasil pré-covid, um dos casos mais conhecidos com grande repercussão midiática em 2015 fora a história de um idoso que passou mal na rua, foi levado ao hospital por policiais militares e faleceu dias depois. A morte não foi informada à família. O mais dramático é que a filha, sabendo que o pai tinha problemas de memória, bordava o nome dele e seis telefones para contato na roupa do homem, uma medida para evitar que o idoso não se perdesse na rua. Ele foi enterrado como “desconhecido”, mas não antes de ter seu corpo utilizado para aulas de anatomia na Faculdade de Medicina.
Casos como este, são recorrentes ainda hoje em cidades como São Paulo, região sudeste do Brasil. A não comunicação e cruzamento de informações entre instituições jogam toda a responsabilidade para as famílias em integrar dados, buscar informações, checar nas várias delegacias policiais, hospitais e necrotérios por seu parente. Segundo Vendramini (2018), para uma família ter certeza de que o parente não está morto, esta precisa visitar as 72 unidades do Instituto Médico Legal (IML) do estado de São Paulo, pois os dados da Polícia Civil, Polícia Militar, o Serviço de Verificação de Óbito, Serviço Funerário e o IML não são compartilhados entre si.
Esta prática, que dificulta o cruzamento de informações e acaba por desaparecer com os corpos, não surge recentemente no Brasil. Nos porões da última ditadura militar (1964-1985), presos políticos eram assassinados e o próprio sistema dava conta de produzir laudos de morte falsos. Afirmavam que estas ocorreram durante confronto com a polícia, e, no laudo de necropsia, nunca havia qualquer menção a tortura e execução como circunstância da morte. Uma estratégia bastante conhecida nas ditaduras latino-americanas e em tantos lugares do mundo. As mortes e o ocultamento de corpos de militantes que lutavam contra a repressão, entram em um sistema de produção de papéis - como laudos, declarações, fotografias, que já desaparecia com pessoas, que, para o Estado, não eram “importantes”. As tais vidas “não enlutadas”, para utilizar o termo de Judith Butler em seu livro ´Vida Precaria´ (2006), eram vidas de negros, pobres, moradores de rua, pessoas internas de hospitais psiquiátricos —a ditadura foi o período onde houve a maior população ingressada em hospitais psiquiátricos— que eram destituídas de sua identidade ao longo da sua passagem pelas instituições estatais de segurança pública e no próprio serviço municipal funerário nos anos da ditadura. O que a repressão faz é simplesmente utilizar essa maquinaria de desaparecer e incluir os opositores do regime.
Esta prática, que dificulta o cruzamento de informações e acaba por desaparecer com os corpos, não surge recentemente no Brasil. Nos porões da última ditadura militar (1964-1985), presos políticos eram assassinados e o próprio sistema dava conta de produzir laudos de morte falsos.
Como lembra Rita Segato em seu livro `La Guerra contra las Mujeres´, o “Estado en Latinoamérica es una reproducción del esquema y relación colonial en su arquitectura y estructuración de las instituciones y su racionalidad en la burocracia”. Nesta perspectiva, o conceito de raça e racismo é central. O que marca estes corpos através das gerações, em especial na cidadania dada na morte? Se “raça” em termos biológicos é uma ficção, concordo com o pesquisador Jaime Alves em um artigo publicado na revista Antípode em 2014 na perspectiva em que “o mesmo não pode ser dito às implicações materiais nas vidas das populações racializadas”. Raça, como realidade socialmente construída, estrutura as relações sociais e define não apenas o acesso diferencial à cidadania, mas também ao direito básico de viver. Enquanto projeto fundante da modernidade e base estruturante do capitalismo, o racismo foi utilizado enquanto tecnologia, permitindo o exercício do biopoder e o direito soberano de poder matar. Não à toa, autoras feministas negras como Keeanga-Yamahtta Taylor, Ruth Gilmore, Angela Davis entre tantas outras têm denominado capitalismo racista patriarcal para evidenciar às formas estruturantes das desigualdades nesse sistema.
Quais são as raízes históricas no aparelhamento das instituições e formas de lidar com diferentes categorias de cidadãos que temos como herança no presente? Nesse caso me refiro às diferentes formas de desaparecer com corpos que se vê atualmente fundamentadas, a partir de uma herança de tecnologias e aparelhamentos institucionais que vem da ditadura e que, no processo da redemocratização e transição, não foram repensadas no âmbito das instituições que antes faziam parte do aparato repressivo. Quando falamos de formas diferentes de tratamento no que se refere a quem tem mais direitos, não há como não pensar nas raízes históricas brasileiras que entrecruzam raça, classe e gênero especialmente no tratamento desigual dado na morte aos casos de “desconhecidos”.
O desaparecimento em três atos:
Ato 1: A vala clandestina da ditadura com mais de 1500 corpos
Uma vala clandestina construída nos anos de 1970 durante a ditadura militar ocultou mais de 1500 corpos, entre dissidentes políticos torturados e mortos, além de inúmeras pessoas enterradas como desconhecidas e vítimas de esquadrões da morte. Soma-se a isso, um número, de talvez, milhares de crianças que haviam falecido pela epidemia de meningite que o governo militar buscava esconder os mortos e a gravidade da situação ao resto da população.
Ato 2: Privatização de cemitérios e a perda de identidades.
Em 2018, um ossário coletivo em um cemitério de São Paulo está totalmente ocupado e a sugestão é a de cremação desses remanescentes humanos ósseos. Mas quem e quantas são? Essas pessoas que tiveram como destino esse ossário coletivo perderam suas identidades na burocracia da morte. Não se sabe quantos estão ali e nem quem são. Em julho daquele ano, quando fui realizar a pesquisa para a minha tese, o contexto deste ossário se inseria no interesse da prefeitura de São Paulo em privatizar serviços e instituições, tendo sido criado inclusive uma Secretaria municipal de Desestatização. Os cemitérios estavam no meio disso. Para que houvesse interesse empresarial, era necessário possibilitar novos espaços para venda de jazigos e por isso, o interesse na cremação.
Um ato religioso no cemitério ocorre contra a cremação, junto a uma manifestação que acontecia no centro da cidade. Familiares de pessoas desaparecidas se unem a familiares de desaparecidos da última ditadura na Praça da Sé, muitas destas eram mulheres que tiveram que fazer, elas mesmas, esse caminho por inúmeras instituições para buscar a seus entes queridos. Estão ali, enfrentando algo que simplesmente não se vê, não tem cara nem lugar. Essa maquinaria dispersa como dizia Mark Fisher em seu livro Realismo Capitalista. Essas pessoas que sabem bem o que é o desaparecimento e a dúvida que seu ente querido pode estar em qualquer lugar. Estão ali, em solidariedade para aqueles remanescentes humanos que teriam como destino a cremação. Algo ao redor de 1500 a 1600 pessoas inumadas, diziam, macabra coincidência de histórias que se repetem de uma vala a um ossário.
Ato 3: As valas da pandemia
Divulgado em inúmeros lugares do mundo, a imagem da construção de valas comuns durante a pandemia, como a do cemitério Nossa Senhora Aparecida na cidade de Manaus, chocava. Com o aumento dos casos positivos de COVID-19, o governo brasileiro, assim como diferentes estados do mundo, propuseram ações para a gestão dos corpos falecidos pela doença e, algumas medidas se relacionavam à rápida inumação, ou outras formas como a cremação, para tentar minimizar o risco de contaminação.
Em um contexto de confinamento, onde as pessoas não podem estar na rua, o número de corpos não reclamados pode se tornar muito mais alto. Se estes são cremados ou os documentos necessários não são produzidos, a possibilidade de desaparecidos, cujos remanescentes humanos serão praticamente impossíveis de rastrear, será imenso. Nessa situação de emergência sanitária, a COVID-19 aumenta exponencialmente a números indecifráveis as grandes fraturas e fissuras existentes nesse sistema.
Temos permitido discursos de ódio, apologia à tortura e a torturadores por parte de políticos e a marginalização de tantos grupos. “Brasil: Quão caótico é este governo?” perguntava o programa alemão. Fazer frente ao caos como forma de governo, frear o aumento da intolerância, do negacionismo e revisionismo tem sido a luta cotidiana de inúmeros grupos. Está em jogo, na disputa das eleições municipais que ocorrerão agora em novembro em todas as cidades brasileiras, a esperança e o medo dos possíveis futuros.